sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

PSICANÁLISE E PSICOTERAPIA - Uma Articulação Teórico-Clínica

 Um texto de:
Carlos Leal, Elizabeth Hermanson, Jocelém Botelho e Maria Helena Peixoto de Oliveira*
 
              Viver uma experiência psicanalítica, tanto do lugar de analista como de analisando, é poder praticar a arte do falar e do ouvir.
            Foi ouvindo que Freud criou a psicanálise e, justamente ouvindo, é que a psicanálise pode constantemente se recriar.
            O que dizem nossas clínicas?
            Nos últimos tempos, uma série de artigos contrapondo psicanálise e psicoterapias vêm sendo publicados, tanto no Brasil como no exterior, procurando delimitar fronteiras e estabelecer identidades teórico- clínicas.
            O que significa isso? A psicanálise mudou? Os “tempos” mudaram? As subjetividades têm novos modelos de se constituir? A globalização invade as práticas clínicas?
Quem de nós, psicanalistas, nunca se perguntou, no refúgio das paredes de seus consultórios, se o que faz com aquele determinado paciente é psicanálise ou não?
            É psicoterapia ou psicanálise? Implicando a questão, na maioria das vezes, em juízos de valor.
            Tentando pensar esse contraponto, que não é novo, pois Freud já se referira a ele, nos propomos a fazer um estudo considerando como eixos de reflexão os aspectos históricos, a identidade teórico-clínica destas práticas, e as questões relacionadas à formação e identidade dos terapeutas no contexto atual.  
Contextualização Histórica
 De que forma compreendemos a relevância deste tema no contexto da clínica contemporânea ?
            Partindo dos verbetes sobre Psicanálise e Psicoterapia enunciados por Laplanche e Pontalis (1983) no seu Vocabulário de Psicanálise:
 
“Psicanálise: disciplina fundada por Freud e na qual podemos distinguir três níveis:
A) Um método de investigação que consiste essencialmente na evidenciação do significado inconsciente das palavras, das ações, das produções imaginárias (sonhos, fantasmas, delírios) de um indivíduo. Este método baseia-se principalmente nas associações livres do indivíduo, que são a garantia da validade da interpretação. A interpretação psicanalítica pode estender-se a produções humanas para as quais se não se dispõe de associações livres.
B) Um método psicoterápico baseado nesta investigação e especificado pela interpretação controlada da resistência, da transferência e do desejo. Com este sentido se relaciona o uso de psicanálise como sinônimo de tratamento psicanalítico.
C) Um conjunto de teorias psicológicas e psicopatológicas em que são sistematizados os dados introduzidos pelo método de investigação e do tratamento.
Psicoterapia:
A) Sentido lato: qualquer método de tratamento das desordens psíquicas ou corporais que utilize meios psicológicos e, mais precisamente, a relação entre terapeuta e o doente, a hipnose, a sugestão, a reeducação psicológica etc... neste sentido, a psicanálise é uma forma de psicoterapia.
B) Num sentido mais restrito: a psicanálise é muitas vezes contraposta às diversas formas de psicoterapia, e isto por uma série de razões, nomeadamente a função principal da interpretação do conflito inconsciente e a análise da transferência tendente à resolução deste.
C) Sob o nome de “psicoterapia analítica” entende-se uma forma de psicoterapia que se apoia nos princípios teóricos e técnicos da psicanálise, sem todavia realizar as condições de um tratamento psicanalítico rigoroso.”
            Os verbetes acima citados já nos revelam a estreita e problemática relação entre psicanálise e psicoterapia.  Num sentido mais amplo, por serem dois métodos de trabalho sobre o psiquismo humano, cuja base é a relação entre terapeuta e paciente, parecem ser semelhantes mas no sentido mais restrito revelam suas diferenças.    
Para Freud, a psicanálise era a modalidade de psicoterapia curativa e científica disponível para o tratamento das neuroses, considerando todas as demais como formas de terapias baseadas na sugestão e na influência hipnótica. Segundo Wallerstein (1989), esta visão continuou sendo sustentada por autores como Glover até 1950. Considera-a um desserviço para o futuro desenvolvimento das psicoterapias por obscurecer as complexidades teóricas e técnicas envolvidas na prática das psicoterapias psicodinâmicas, ao reconhecer nelas apenas uma prática sugestiva. O autor denomina esta época como a primeira era do relacionamento psicoterapia-psicanálise.
            A partir de 1950, especialmente em 1954, uma vasta literatura a respeito resultou no reconhecimento da diversidade de objetivos e técnicas em um espectro indo de um polo onde se situam as técnicas de suporte e apoio a um polo predominantemente expressivo representado pela psicanálise propriamente dita.  Este período durou aproximadamente 20 anos e foi chamado pelo autor de segunda era do relacionamento psicoterapia-psicanálise.
A partir desta década a psicanálise se expandiu, passando a ser indicada para um número crescente de situações clínicas consideradas afastadas das condições para as quais eram inicialmente indicadas, as psiconeuroses.
Ana Freud lamentou este fenômeno considerando que esta expansão ilimitada fez com que não se continuasse a aprimorar a técnica analítica no tratamento das neuroses comuns.
Quanto a esta questão, Bernard Miodownick (1998) ressalta que por conta desta expansão após a década de 50 e a entrada em cena das psicoterapias cada vez mais impregnadas de fundamentos psicodinâmicos, diluíram-se as certezas quanto às distinções claras e definidas entre as duas áreas, gerando inúmeras confusões conceituais e práticas.
 Hector Fiorini em seu texto sobre Psicoterapias e Psicanálise (1981) assinala que “as limitações da psicanálise seriam a base para fornecer teoria e conceitos técnicos a outras psicoterapias”. E mais : “as técnicas psicoterápicas em seu amplo leque se nutrem das aquisições técnicas da psicanálise de um modo peculiar; aplicando algumas delas com usos similares e opondo-se a elas por meio de recursos técnicos diferenciados que no confronto se constituem como desafio a uma busca exaustiva de fundamentos para as suas próprias manipulações”.
Vale lembrar, nas palavras de Freud (1919): “...seremos assim muito provavelmente obrigados, na aplicação de nossa terapia à massa, a aliar abundantemente o ouro da psicanálise ao cobre da sugestão direta.”
Voltando a Wallerstein, que intitula a terceira era do relacionamento psicoterapia-psicanálise como a era do consenso fragmentado, as diferenças não são mais negadas e as fronteiras entre os dois campos não tão definidas, admitindo-se interpenetrações (propositais ou não) dos procedimentos  técnicos.
No texto sobre Psicanálise e Psicoterapia Daniel Widlöcher e Viviane Abel-Prot (1999)  dizem: “ ...descobrimos cada dia mais que as diversas formas de doenças tratadas por nós não podem ser curadas por uma só técnica”.
Como nos diz Mezan (1988) o importante seria “dissipar os dilemas que resultam de uma certa confusão em considerar que a psicoterapia e a psicanálise seriam em princípio homogêneas, de modo que se pudesse estabelecer méritos e deméritos a partir de uma comparação que poria em jogo critérios universais”.
Mas por que será que nos tempos de hoje  a questão das relações entre psicoterapia e psicanálise volta a se colocar com renovada insistência?
Além das questões relativas à identidade teórico-técnica destas práticas uma dimensão política vem se agregando ao debate: como enquadrar as práticas psicoterápicas e psicanalíticas na nova organização assistencial em saúde e seu financiamento por seguradoras, empresas privadas de saúde e serviços de saúde pública ?  A necessidade atual da definição da relação custo-benefício, eficácia clínica (em comparação com outros métodos terapêuticos), duração do tratamento, etc., vem exigindo dos profissionais de saúde mental um posicionamento público claro e responsável sendo uma das razões motivadoras das publicações recentes sobre o tema. 

Sobre a identidade teórico-clínica

 Com os Estudos  sobre a Histeria (Freud, 1895) inaugura-se uma teoria da psicoterapia.  As indicações comunicadas por Freud seguidamente confirmarão, a partir da sugestão, a diferença entre psicoterapia e psicanálise, mas também a finalidade de um tratamento psicanalítico de chegar a resultados terapêuticos.
Fédida (1999) considera que não se pode conceber uma prática psicoterápica que não seja psicanalítica.  Para ele a instauração de uma situação analítica “...não está jamais assegurada de uma vez por todas, ela se desinstaura e se reinstaura, mas permanece todavia, uma ficção ideal, da qual o analista não pode prescindir e sob a ótica da qual ele regula a comunicação e a ação terapêuticas”.
Poderíamos falar em garantia de um processo analítico tendo como base os fundamentos teóricos e técnicos da psicanálise sejam eles a transferência, a neutralidade, a interpretação ou a associação livre?
A clínica dos “casos difíceis” (pacientes boderline, psicóticos e a psicoterapia com crianças) seria onde a psicoterapia teria sua indicação mais específica.  No entanto, quando praticadas por psicanalistas, esta prática tem um valor muito grande demonstrando uma extraordinária riqueza técnica e metapsicológica da qual o tratamento psicanalítico-padrão muito se beneficiaria.  Poderíamos pensar nas práticas psicoterápicas como novas formas de expressão da psicanálise.
Os psicanalistas que se intitulam praticantes das duas formas de tratamento sabem que um processo psicanalítico tradicional pode existir numa situação face a face com sessões bissemanais e que um enquadre técnico mais rigoroso pode produzir alguns efeitos terapêuticos sem que um processo psicanalítico seja realmente estabelecido.  No primeiro caso,  existe o risco de uma banalização e uma diluição das práticas - para que fazer uma análise custosa em frequência e duração das sessões, se os resultados obtidos são os mesmos ? - no segundo caso, há a possibilidade de se mascarar as realidades clínicas com uma falsa tecnicidade.
Embora a psicoterapia tome a psicanálise como referência, em contrapartida aponta suas divergências.
Para Joel Birman (1999) não existe distinção entre psicanálise e psicoterapia a partir de suas características ou critérios formais.  O autor faz ressalvas quanto à indicação, dizendo que o que importa para um ou outro procedimento são as condições psíquicas do paciente, do seu desejo e do seu momento.  Em algumas instituições psicanalíticas, entretanto, o número de sessões semanais é o ponto mais sensível, existindo sociedades onde fala-se de psicoterapia e não mais em psicanálise quando a freqüência semanal é inferior a quatro sessões semanais.
Que relação estabelecer entre a frequência das sessões, o desenvolvimento da transferência, a capacidades de insight a partir da narrativa e os efeitos da neutralidade?
Considerando que o modelo da neurose de transferência continua sendo o paradigma essencial do tratamento analítico, o manejo da neutralidade torna-se fundamental por ser condição necessária ao seu desenvolvimento.  Neste caso faz sentido a importância dada ao ritmo semanal das sessões. O enquadre, entretanto, conheceu evoluções. Freud mesmo mudou o tempo de suas sessões de 60 para 50 minutos. Com certos pacientes há a possibilidade de se reduzir o ritmo das sessões podendo ser este um sinal de avanço no tratamento.
Recorremos a D. Widlöcher (1999), em seu texto Psicanálise e Psicoterapia, para retratarmos a idéia sobre a duração das sessões: “...o importante é encontrar o tempo justo, tanto para o paciente quanto para o analista; uma duração suficientemente longa, suficiente para permitir ao silêncio encontrar seu lugar, e ao psicanalista oferecer seu espaço psíquico a um outro e se deixar ocupar pelo pensamento, pelas palavras, pelas emoções de um outro; para que o paciente tenha o tempo de passar de um tempo `social´ a um tempo mais próximo do devaneio, próprio à associação livre, já que somente ela permite o respeito à regra fundamental da psicanálise”.
De fato bastaria enunciar a regra fundamental a um paciente para que o processo psicanalítico possa se desdobrar ? Ou deveríamos escutá-lo com uma atenção flutuante, esperando que ele associe livremente, aguardando que a transferência apareça e fazendo das interpretações e construções os únicos instrumentos de trabalho?
Para que o processo psicanalítico possa se desdobrar “será preciso misturar a este ´ouro´ da análise o ´cobre´ da sugestão” ?
Talvez daí se origine a questão dos “arranjos” técnicos para fazer face a variáveis como fraqueza de motivações, custo em tempo e dinheiro.
 Aos poderes públicos interessa esses tipos de arranjos - “porque fazer uma análise longa e frequentemente custosa se os resultados esperados são aparentemente os mesmos” (Widlöcher e V.Abel-Prot, 1999)?
Com relação à psicoterapia breve de fundamentação analítica, encontramos em Joel Birman (1999) a argumentação de que seria um contra senso,  uma vez que não podemos definir o tempo e o ritmo de um processo –que depende da temporalidade subjetiva de cada paciente.
Na psicoterapia psicanalítica há uma ampla utilização dos referenciais psicanalíticos para a compreensão do sintoma embora não devamos perder de vista a idéia de que, numa análise, a remoção do sintoma não é uma prioridade  enquanto na psicoterapia este é um objetivo primordial.
Com relação às interpretações na psicanálise, elas se inscreveriam necessariamente no quadro da transferência que é o canal de onde advém a verdade e a singularidade do desejo do outro.   Nas psicoterapias, elas podem incidir sobre as relações do paciente com o seu meio e sobre o contexto de sua vida fora do campo do tratamento. Se no tratamento psicanalítico a associação livre constitui-se como regra fundamental e a interpretação como o procedimento característico, na prática psicoterápica a ênfase dada é na concentração seletiva, o terapeuta guiando intencionalmente o foco.
Para falarmos dos objetivos e resultados de uma e de outra prática pensamos que na prática  psicanalítica, espera-se ao final do tratamento uma transformação estrutural do psiquismo enquanto nas psicoterapias haverá mudanças adaptativas com melhoras no relacionamento com o mundo externo a partir de uma maior integração psíquica.  Isto não quer dizer que a psicanálise não possa gerar melhoras sintomáticas e as psicoterapias não possam trabalhar raízes primitivas de conflitos e levar a melhoras estruturais.
A escolha do método que vai se usar depende de muitas variáveis e pode acontecer que uma psicoterapia se transforme em uma psicanálise.  Muitas vezes é quando o sintoma desaparece que uma análise tem seu início.
Tanto na escolha do método que vai se usar com um paciente, quanto nas mudanças de método durante o tratamento, compreendemos como diz D. Widlöcher e V.Abel-Prot que “...as disposições de espírito do psicanalista vão desempenhar um papel fundamental e é evidentemente necessário que este último considere seriamente e com interesse as práticas psicoterápicas”.
 Kernberg (2000) analisa as controvérsias atuais em relação à identidade teórico-clínica das práticas psicanalíticas e propõe um modelo integrativo para se  pensar esta questão - na medida em que estas práticas estão referidas à teoria psicanalítica - subdividindo-as em psicanálise propriamente dita, psicoterapia psicanalítica e psicoterapia de apoio de base psicanalítica.
O autor analisou em estudo anterior as convergências e divergências atuais das técnicas psicanalíticas concluindo que a extensa correlação nas abordagens das diferentes escolas psicanalíticas permite a definição de uma técnica básica comum que possibilita uma delimitação geral das práticas psicanalíticas.  Elas incluem: a manutenção de um foco de atenção sobre a análise da transferência; atenção à análise de caráter (organizações patológicas, na abordagem kleiniana e estruturas subjetivas, na escola francesa) e ênfase no sentido inconsciente do “aqui e agora”.
O autor define ­interpretação, análise da transferência e neutralidade como os três parâmetros essenciais da psicanálise estabelecendo a partir da sua articulação uma diferenciação entre as modalidades de tratamento.
A técnica da interpretação inclui a clarificação das experiências conscientes e pré-conscientes, a confrontação como uma tática focal no comportamento verbal e não-verbal e a interpretação propriamente dita dos significados do que foi clarificado e confrontado.  O significado inconsciente pode ser utilizado no “aqui e agora” como uma ponte para a interpretação do “lá e então”.
A análise da transferência é o foco interpretativo principal, mesmo existindo diferenças significativas no seu manejo, de acordo com as escolas: na escola kleiniana e no grupo independente da escola inglesa o foco prioriza a ativação das relações objetais primitivas; a escola francesa prioriza a análise das estruturas e do discurso e para a psicologia do ego o foco recai sobre as defesas de caráter.
A neutralidade refere-se a uma posição de objetividade na escuta do paciente de modo a favorecer a evidenciação da transferência e sua análise a partir das regras do “setting” analítico.          
Estes três parâmetros possibilitam estabelecer características diferenciais, nas práticas psicanalíticas,  em termos de objetivos, abordagens e técnicas.
As psicoterapias psicanalíticas se caracterizam pelas mesmas técnicas básicas da psicanálise, mas com modificações quantitativas que resultam numa mudança qualitativa da natureza do tratamento.  Uma sessão de psicoterapia psicanalítica pode ser indistinguível de uma sessão de psicanálise mas, a partir de um determinado tempo, as diferenças aparecem claramente.   A psicoterapia psicanalítica utiliza a interpretação mas, para pacientes com patologias mais graves, a clarificação e a confrontação ocupam um espaço mais significativo do que a interpretação propriamente dita. A análise da transferência é o foco essencial nas psicoterapias psicanalíticas.  Com pacientes mais graves isto se modifica pela ativa conexão interpretativa da análise da transferência com a análise aprofundada da situação do dia a dia do paciente.  Essa abordagem se faz necessária em função da predominância de mecanismos de defesa mais primitivos, o splitting em particular, que tende a dissociar a situação terapêutica da realidade externa do paciente e pode levar a severas e dissociadas atuações tanto nas sessões como fora delas.
A neutralidade é um instrumento essencial na prática psicanalítica.  No tratamento de pacientes graves, a necessidade da colocação de limites ou enquadres faz com que, muitas vezes, se precise abandoná-la para se preservar a integridade do paciente e do tratamento. Qualquer abandono da neutralidade  técnica que se faça necessário, como no caso de comportamento suicida, deve ser imediatamente explorado após sua incidência, em termos das implicações que possa ter na transferência para que, via interpretação, a neutralidade possa ser restaurada. A neutralidade na psicoterapia psicanalítica é um estado ideal de trabalho, continuamente abandonado e interpretativamente reinstaurado.
A psicoterapia psicanalítica requer de duas a quatro sessões por  semana, mas não menos de duas, com a dupla finalidade de se trabalhar o desenvolvimento da transferência e acompanhar as mudanças de realidade na vida do paciente. Deve ser conduzida face a face para permitir uma melhor evidenciação da comunicação não-verbal, que é uma forma predominante de comunicação em pacientes graves.
Na psicoterapia psicanalítica, a atenção à dinâmica da vida externa do paciente representa um foco modificado em relação à abordagem psicanalítica tradicional.
A psicoterapia de apoio de base psicanalítica utiliza os passos preliminares da técnica interpretativa, ou seja, clarificação e confrontação, mas não utiliza a interpretação propriamente dita. Utiliza, diferentemente das outras modalidades de tratamento, apoio cognitivo e emocional, na forma de intervenções do terapeuta que tendem a reforçar a adaptação entre impulso e defesa por meio de informação cognitiva ( persuasão, conselho, etc.) e por meio de suporte emocional (encorajamento, elogio...).  Além disso, a psicoterapia de apoio utiliza intervenções ambientais diretas, pelo terapeuta, pelos familiares ou profissionais de saúde engajados em funções terapêuticas auxiliares.
A transferência não é interpretada nas terapias de apoio, mas também não é ignorada. A neutralidade é sistematicamente abandonada e o terapeuta se coloca, alternadamente, na posição de ego, Id , superego do paciente ou da realidade externa, dependendo do que esteja representando, no momento, um melhor potencial de adaptação para o paciente.  Tal como a psicoterapia psicanalítica, é conduzida face a face, com a vantagem de apresentar considerável flexibilidade quanto à frequência, de acordo com a urgência das dificuldades do momento e os objetivos do tratamento.
A combinação de psicoterapia expressiva ou psicanalítica com intervenções psicoterapêuticas de apoio é predominante na prática clínica atual. O autor acredita, no entanto, que os efeitos de apoio de qualquer intervenção devam ser diferenciados das técnicas de apoio propriamente ditas, e que a combinação de técnicas de apoio e interpretativas é questionável pois interfere na  possibilidade da análise da transferência, em profundidade, pelo abandono da posição de neutralidade.  Nesse sentido, o autor acredita que uma formação psicanalítica completa facilita tanto o aprendizado de uma técnica psicoterapêutica estritamente psicanalítica, quanto a sua diferenciação de uma psicoterapia de apoio
Formação e Identidade dos Terapeutas
A identidade e formação de psicanalistas e psicoterapeutas não pode ser considerada antes de compreendermos a identidade e a especificidade destes dois campos do exercício clínico: a psicanálise e a psicoterapia.   Foi o que procuramos fazer nos parágrafos anteriores.
Não há como deixar de assinalar e reconhecer que ao admitir a prática da psicoterapia o analista sente-se desconfortável e com a sensação de que está fazendo algo menor, menos nobre e de eficácia inferior quando comparada com a prática da psicanálise.  Sobre a prática da psicoterapia Birman (1999) afirma que os psicanalistas ... vivem a sua prática com um certo sentimento de vergonha, como analistas envergonhados, e até mesmo com um certo estado confusional, já que percebem a realização de um processo psicanalítico mas não podem reconhecê-lo como tal.
O estado confusional decorre da sensação de estar realizando uma prática que, divergindo dos cânones formais institucionalmente (pré)estabelecidos, não pode ser reconhecida como analítica. Mais ainda: relaciona-se ao conflito vivido internamente pelo terapeuta entre sua identidade profissional forjada, por um lado, através de sua experiência empírica acumulada a partir do  exercício clínico e, de outro, pelas referências oriundas da instituição psicanalítica a qual pertence.  Em outro artigo, Miodownick (1998) fala de uma verdadeira crise de identidade que alguns psicanalistas podem sofrer pela vivência de desonra implicada na admissão do exercício psicoterápico, considerado como coisa menor.
A concepção da psicoterapia como uma prática menor e com um alcance mais restrito pode supor que a formação de psicoterapeutas se constitua como um processo mais superficial e menos complexo ou exigente quando comparado com a  formação analítica.  Afinal, no caso de admitir-se – e nem sempre isto ocorre - que a psicoterapia  prioriza as intervenções diretivas e não a neutralidade, a realidade externa em relação à realidade interna, a personificação do vínculo de trabalho e não o vínculo transferencial, poderíamos imaginar que as exigências para a formação do psicanalista sejam maiores em relação a formação dos psicoterapeutas.  Esta não parece ser a opinião dos autores consultados neste trabalho.
Três dos sete textos examinados (Fédida, P., 1999; Miodownick, B., 1998; Kernberg, O., 1999) sugerem que longe das psicoterapias representarem práticas simplificadas, podem revelar-se exatamente o oposto.  Fédida cunha o termo: análise complicada para referir-se aos aspectos teóricos e clínicos implicados na prática psicoterápica junto aos casos difíceis (psicóticos, crianças, casos-limite).  O autor acredita que o tratamento psicanalítico-padrão possa beneficiar-se muito dos conhecimentos técnicos e metapsicológicos advindos das práticas psicoterápicas utilizadas na abordagem destes pacientes. Miodownick acredita que a formação psicanalítica seja uma pré-condição para o desenvolvimento do que denomina psicoterapia especial, evitando que esta prática se transforme em um procedimento meramente sugestivo.  Kernberg refere-se à psicoterapia psicanalítica como uma técnica altamente sofisticada e especializada com suas indicações e contra-indicações específicas.
Se admitirmos, seguindo a argumentação de Wallerstein (1989) que hajam diferenças entre a psicoterapia e a psicanálise mas que as fronteiras entre estes dos campos não podem ser rigidamente delimitadas - havendo uma interpenetração (intencional ou não) de procedimentos e técnicas de um campo no outro – como poderíamos compreender a formação dos terapeutas/analistas ? Seria possível desvincular a formação de psicoterapeutas da formação psicanalítica ?  A formação psicanalítica, por sua vez, deveria incluir o estudo teórico e técnico da psicoterapia ?
Kernberg (1999) defende a idéia de que os institutos formadores de psicanalistas deveriam incluir em seus cursos avançados o ensino da psicoterapia psicanalítica.  Acredita que este estudo possibilitaria aos analistas em formação conceberem a técnica psicanalítica de forma mais flexível e – acima de tudo – minorarem a problemática antinomia entre a técnica psicanalítica standard e a prática psicoterápica, predominante na clínica da atualidade. 
Aqui surge uma outra questão tão importante quanto polemica: os institutos de psicanálise deveriam oferecer formação em psicoterapia psicanalítica para não analistas ? O autor assinala as implicações conceituais, clínicas, educacionais e políticas que esta questão levanta.  Nos Estados Unidos diversos institutos de psicanálise oferecem esta formação para psiquiatras e psicólogos.  Em certos casos alguns destes profissionais acabam se motivando para a formação psicanalítica.  Em outros países como a França e a Itália, os institutos de psicanálise tem uma orientação oposta, acreditando que desta forma estarão protegendo a natureza específica da formação psicanalítica.
Parece-nos que a idéia de situação analítica utilizada por Fédida (1999) pode ser útil para a compreensão da essência do encontro analítico, deslocando seus aspectos puramente técnico-formais para o lugar que devem ocupar.  Diz o autor que a instauração de uma situação analítica...não está jamais assegurada de uma vez por todas (ela se desinstaura e se reinstaura) mas permanece, todavia, uma ficção ideal da qual o analista não pode prescindir e sob a ótica da qual ele regula a comunicação e a ação terapêuticas.  A situação analítica pode estar presente tanto na clínica psicanalítica propriamente dita quanto nas psicoterapias que tem na psicanálise o seu referencial teórico.  É a partir dele que a interação terapêutica será compreendida, assim como as formações sintomáticas e o processo de transformação e mudança psíquica posto em marcha.
O encontro terapêutico – seja ele  estritamente psicanalítico ou psicoterápico – não pode prescindir do que Fédida denomina inventividade psíquica ou força de imaginação as quais tanto analista quanto psicoterapeutas devem ser capazes de suscitar em si mesmos quando diante das formações sintomáticas de seus pacientes.  Em outras palavras: agir pela alma sobre a alma do outro através do recurso às palavras metaforizantes.
Quando o rigor formal dos procedimentos técnicos prevalece – ainda que corretamente embasados e respaldados por referências teóricas irrepreensíveis - teremos um encontro clínico esvaziado, um ritual obsessivo com baixo potencial transformador. Uma prática que mais provavelmente atenderá ao desejo ou limitações (técnicas ou pessoais) de psicoterapeutas ou psicanalistas do que aos interesses e necessidades dos pacientes.
Se o tratamento a ser posto em marcha será a psicanálise ou a psicoterapia (ou, se preferirem, composições entre os dois procedimentos, em evolução dinâmica e complexa no decorrer do processo) a decisão deverá depender das necessidades do paciente e suas possibilidades daquele momento, levando-se em conta o quadro básico do seu sofrimento, sua disponibilidade e motivação para viver o processo terapêutico, sua disponibilidade financeira, entre outros. 
Seria desejável que o processo de formação dos terapeutas, além da familiarização com teorias, técnicas e escolas psicanalíticas,  estimulasse sua criatividade, flexibilidade e  inventividade, como atributos essenciais ao exercício clínico com potencial transformador.  Caso contrário estaremos formando profissionais que, à semelhança de Procusto**, enquadram seus hóspedes-pacientes nas suas limitadas referências pessoais a fim de proteger sua provável vulnerabilidade narcísica. 

Conclusão

 Vimos que a idéia - ainda disseminada - de que a relação da psicoterapia com a psicanálise seja uma relação de subordinação não se sustenta mais.  Aqueles que ainda mantém tal idéia o fazem baseados em equívocos de naturezas variadas.  Entre elas destacamos:
 
§         a concepção estática e simplista do corpo teórico-clínico da psicanálise contemporânea (caracterizada pelo pluralismo teórico) em contraposição à idéia da existência de uma suposta verdadeira psicanálise.  Quanto mais concordante com este padrão, mais verdadeiramente analítica e legítima seria a prática clínica; quando mais distante dela, mais psicoterápica a prática clínica e, portanto, de menor qualidade;
§         o equívoco de considerar que o elemento definidor da prática analítica sejam seus aspectos puramente formais: número de sessões semanais, uso ou não do divã, etc.  Quanto mais afastados deles, menos analítico e mais psicoterápico seria o tratamento;
§         a presunçosa idéia de que apenas o analista/terapeuta determina o que é psicoterapia ou psicanálise.  Podemos usar uma interpretação transferencial impecavelmente formulada e o paciente tomá-la como sugestão.  E vice-versa; 
§         a interpenetração de elementos da técnica psicanalítica (interpretação transferencial, neutralidade, etc.) e da técnica psicoterápica (sugestão, diretividade, etc.) faz ruir a idéia de uma hierarquia rígida e definitiva entre os dois procedimentos.  O predomínio de determinados elementos técnicos sobre outros é o que define se estamos diante de uma psicanálise ou de uma psicoterapia, além da maneira como o paciente os utiliza.
 
A questão da formação profissional de analistas e psicoterapeutas parece-nos outro fator de extrema importância.  A idéia de que os psicoterapeutas poderiam ser formados através de um processo menos exigente, mais simplificado e em um tempo mais curto em relação à formação psicanalítica, só se sustenta quando concordamos com a noção de que a psicoterapia seja uma prática menos qualificada do que a psicanálise.  Idéia que refutamos enfaticamente ao longo deste trabalho.  Defendemos a idéia de que a formação psicanalítica baseada em uma análise pessoal qualificada, prática clínica supervisionada e estudo extensivo de escolas e autores psicanalíticos permanece sendo indispensável e insubstituível para a formação tanto de psicanalistas quanto de psicoterapeutas. 
Somente através do longo e difícil processo da formação psicanalítica tanto os futuros psicanalistas quanto os psicoterapeutas poderão se habilitar para o exercício clínico cuja marca é a aptidão para a perceber e interagir com as formações do inconsciente, tanto próprias quanto as de seu paciente.
Voltamos às questões iniciais: Os tempos mudaram ? Mudou  a   psicanálise ? Mudou a representação de conflito psíquico na contemporaneidade ?
Mudou a identidade daquele que ocupa o lugar da escuta.
 Em relação à configuração original da psicanálise clássica muitas transformações ocorreram.   Sustentamos a necessidade do reconhecimento e crescente informação em relação a diferenciação de abordagens clínicas legitimadas pela teoria psicanalítica para que os fundamentos teóricos da psicanálise possam ser preservados diante de flexibilizações técnicas que se tornem necessárias frente ao dinamismo do psiquismo humano que também é um produto histórico-cultural. 
 
 
Referências Bibliográficas:
 
1)      Birman, Joel., Psicanálise e Psicoterapia. Jornal de Psicanálise, Vol.32, nº58/59, 1999.
2)      Fédida, Pierre, A Psicoterapia na Psicanálise Hoje. Jornal de Psicanálise, Vol.32, nº 58/59, 1999.
3)      Fiorini, H.J., Teoria e Técnica de Psicoterapias.Francisco Alves, 1981.
4)      Freud, S., Estudos sobre a Histeria. ESB, vol. II, 1895.
5)      ________,Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica.ESB, vol. XVII, 1919
6)      Kernberg, Otto. F., Int.J.Psychoanal., December, 1999.
7)      Lapanche, J./Pontalis, J.B.: Vocabulário da Psicanálise. M.Fontes, 1983.
8)      Mezan, Renato. Psicanálise e Psicoterapia in A Vingança da Esfinge, 1988.
9)      Miodownick, Bernard. RBP, vol.32 (4): 865-884, 1998.
10)Wallerstein, Robert, S. Psychoanalysis and Psychotherapy: A Historical Perspective. Int.J.Psychoanal., 70:563, 1989.
11)Wildlocher, Daniel e cols. Psicanálise e Psicoterapia. Jornal de Psicanálise, Vol.32, nº58/59, 1999.



* Psicanalistas, Coordenadores da Associação Psicanalítica de Nova Friburgo
**   Leito de Procusto:
 Leito de ferro onde, segundo a mitologia grega, este famigerado salteador estendia aqueles que capturava, cortando-lhes os pés quando o ultrapassavam e estirando-os quando não lhe alcançavam o tamanho.



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